22 de dez. de 2004

Infância
"Se queres ser universal, escreve sobre tua aldeia."
Ana Miranda (citando Tolstoi)

Estou escrevendo este post pra mim e "pra o pessoal lá de casa".

"Sejamos simples e calmos,
Como os regatos e as árvores,
E Deus amar-nos-á fazendo de nós
Belos como as árvores e os regatos,
E dar-nos-á verdor na sua primavera,
E um rio aonde ir ter quando acabemos!...

Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver no Universo...
Por isso minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer
Porque sou do tamanho do que vejo
E não do tamanho da minha altura...

Nas cidades a vida é mais pequena
Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro.
Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave,
Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe de todo o céu,
Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos nos podem dar,
E tornam-nos pobres porque nossa única riqueza é ver."

(Fernando Pessoa)


A melhor coisa de ter nascido em Iguaí, além das pessoas de lá, foi ter tantos rios à disposição: rio do Vigário, rio Preto, rio Gongogi, a Barragem, o “rio de D. Alice”, o rio que passava em nossa fazenda, o rio da fazenda de Arlete, o da água Vermelha, o rio do Pilão, o rio da ponte... Alguns nem eram rios, mas riachos, e são tantos e ao mesmo tempo são os mesmos, que apenas mudam de nome de acordo o local por onde passam. O rio era um lugar de brincar e também de lavar roupa, lavar e arear as panelas, pegar água para usar em casa quando ainda não havia rede de abastecimento... “lata d’água na cabeça, lá vai Maria, lá vai Maria...”
Hoje, quando eu conto essas coisas pra meus amigos, eles dizem que é impossível, que certas coisas só aconteciam na Idade Média, tipo cozinhar em fogão de lenha em panela de barro, carregar água em lombo de jegue, passar roupa com ferro a carvão, lamparina de azeite, lampião de gás... Coitados, sempre viveram em cidade grande, não tiveram a felicidade de conhecer a vida simples de uma cidadezinha como a nossa.

Quando eu ainda era Lucinha

Tive uma infância típica de quem nasceu e se criou no interior, com direito a muita liberdade, muita fruta comida no pé, muito banho de rio, muito leite tomado de manhãzinha direto no curral, muita brincadeira, muitas histórias, muitos amigos, vizinhos, primos, tios, avós, bisavó...

Tenho pouca lembrança real da minha primeira infância, lembro mais das coisas que me contavam sobre mim do que realmente lembranças minhas. Só sei mesmo é que era muito sapeca, inquieta, desobediente, transgressora, inventiva, “arteira”, mas ao mesmo tempo era muito alegre, muito carinhosa e isso aliviava um pouco a barra pro meu lado.

Lembro vagamente de uma cenas de quando eu tinha 4 anos e era uma menina moreninha e muito bonitinha: meu avô Arlindo sentado na sala, com a perna cruzada de um jeito que deixava um buraco e eu entrava por baixo pra sentar no colo dele e ouvir os casos que contava. Ele era um moreno bonito, assim meio cabo-verde, alto, magro, elegante. Era o tabelião da cidade e também foi vereador, presidente da Câmara e dono de alambique de cachaça.
Lembro também de quando foi construído o primeiro (e único até hoje) edifício de três andares de Iguaí, o “prédio do Sr. Leonel”, e eu gostava de brincar nos andaimes (o maior perigo), eu devia ser muito pequena e tenho essa imagem na memória: eu, com meus cabelos lisos e quase na cintura, com um vestidinho vermelho, pulando entre os esqueletos das paredes recém-construídas (eu considerava aquilo um “arranha-céu”), acho que minha mãe ficava com os cabelos em pé ao me ver naquelas alturas e mandava alguém me tirar de lá.
Quando a gente é pequena tem mania de viver subindo nas coisas: adorava subir nas árvores do quintal de casa – havia muitas: abacateiro, limoeiro, pimenteira, bananeiras, fruta-do-conde, goiabeiras e muitas mangueiras, e tinha uma especial com um galho torto formando uma “cadeira”, bem no alto, onde eu subia pra ler, pra “estudar”, pra me esconder e ficar sozinha pensando na vida, encarapitada lá no alto (levava uma faquinha e um pouco de sal pra comer manga verde)... subia também no tanque de água no telhado, de onde podia ver a quase toda a cidade. Vivia subindo nos muros, pelo simples prazer de me arriscar, me equilibrando em cima deles. E não só eu, meus irmãos e a meninada toda gostava de brincar assim, nas alturas.

Meus Deus! e quando chovia, era uma festa! Em vez de correr pra dentro de casa, nos abrigar, corríamos pra fora, (deixa, mãe, deixa, vá...) pra tomar banho de chuva, nas bicas dos telhados, descer nas enxurradas usando um caixote de madeira ou uma palha de coqueiro, fazer “barragens”, colocar barquinhos de papel... Preocupação com doença? Nenhuma. A terra molhada ficava melhor pra brincar de “triângulo” e também pra fazer as balas dos badoques, de barro, pra matar passarinho e assar pra comer (!!) - ninguém falava ainda em ecologia -, ou pra fazer pequenos tijolos com caixas de fósforos com os quais construíamos casinhas em miniatura, com todos os detalhes, verdadeiras obras de arte, como pequenos arquitetos. Sábado era o dia da feira e de brincar de “cozinhado” – armar um fogo no chão com tijoles, gravetos e cada um levava alguma coisa de casa ou então pedia colaboração aos feirantes, que já sabiam da tradição e colaboravam com o maior gosto. Era aí, nessa brincadeira, que as meninas aprendiam a cozinhar. E obrigávamos os meninos a ajudar senão não podiam comer. Fazíamos cada comida! até casca de melancia pra fazer “cortado” servia.

Que pena que tenho dos meninos de agora, nossos filhos e netos, que não brincam com nada disso. Vivem presos em playgrounds ou em casa. Brincar na rua? Coisa rara. Depende do lugar. É muito perigoso. Os brinquedos já vêm prontos, eles não têm a chance de inventar quase nada. Alguns, os que têm computador em casa, passam horas ali, sozinhos, hipnotizados diante dos games, frenéticos no manuseio do mouse ou do joystick. Muito diferente de nós, que tínhamos de inventar tudo, fazer os próprios brinquedos. Carretéis de linha e palitos de picolé viravam tratores Cartepillar, frutas verdes ou “pêcas” viravam vaquinhas, bezerros, palitos de fósforos no lugar de pernas e chifres. Quase todas as brincadeiras eram coletivas e nos estimulavam a criatividade. Brinquedos comprados? Só uma vez por ano, no Natal ou no aniversário, e olhe lá... era o normal. Tanto que me lembro de cada um deles. Isso não é saudosismo, é só constatação. Falando assim parece que tenho uns cem anos, mas é só a metade.


Parte 2


É engraçado, eu tinha umas amizades com pessoas mais velhas: D. Eulinda, da Prefeitura, lugar onde eu gostava muito de ir, sentava perto dela e tome conversa! Lembro perfeitamente dos livros nas estantes da biblioteca, eu ficava fascinada olhando pra eles. Às vezes me deixavam folhear (eu ainda não sabia ler). Tem uma história que me contavam, que quando queria ir lá eu dizia: "olha, mãe, dona Eulinda tá me chamando" ( detalhe: de lá de casa não dava pra ver o prédio da prefeitura). Além de D. Eulinda, tinha o Sr. João Pinto, o sapateiro e seleiro; era meu amigo, e eu ficava horas sentada no seu balcão conversando, ouvindo rádio, e ele me dava algumas “prendas”: uns pedacinhos de couro trabalhados, que eu levava pra casa como tesouros. Um dia ele me deu um pedaço grande, com o formato de uma palmatória (sabem o que é?) e eu levei pra minha mãe, toda importante, e disse: “mãe, olha o que seu João Pinto deu pra senhora bater nos meninos”. Ela riu e dependurou a tira de couro em um prego na parede perto do espelho e da bacia que era usada pra lavar as mãos, na copa (ainda não tinha banheiro com pia). A primeira a inaugurar o presente fui eu mesma. Fiz uma arte qualquer e levei uma surra. Fiquei com muita raiva e dei sumiço no tal pedaço de couro, me senti traída.

Parte 3


Quando eu estava com 7 anos, a nossa família cresceu inesperadamente. Meu tio Julindo, irmão de meu pai, ficou viúvo com seis filhos e veio morar em nossa fazenda. Ganhamos seis primos que não conhecíamos ainda: Licinha, Dinalva, Florisvaldo, Edvaldo, Lourival e Zelito. Licinha, com 20 e poucos anos, e Zelito, com minha idade, ficaram morando lá em casa, na cidade. Os outros ficaram na fazenda, exceto Dinalva, que foi morar em Jequié, na casa de tio Arsênio. Dinalva, Florisvaldo e Edvaldo eram bem morenos e pareciam índios, os outros eram mais brancos. Foi uma época de descobertas e de muitas histórias contadas por eles. Tinha cada caso!... À noite, antes de dormir, ficávamos horas ouvindo as histórias que Licinha e Dinalva contavam lá da terra delas, a região rural de Maracás. Casos de assombrações, de um monstro fantástico com “cabeça de cachorro, perna de garrafa, mão de pá, barriga de maxixe” chamado ‘Cacodia’..., casos de lobisomens, de cobras, enfim, um mundo de coisas, contados com aquele sotaque e uma linguagem completamente diferente. As meninas tinham umas roupas e acessórios parecidos com coisas de ciganas, as saias compridas imensamente rodadas, coloridas e engomadas, e muitas bijouterias diferentes das que estávamos acostumadas a ver. Nós ficávamos olhando para aquelas coisas, fascinadas... pelo menos eu ficava. Era tudo tão novo, tão diferente! Dinalva era muito engraçada, era a cigana-índia e falava bem rápido, sempre repetindo o nome da pessoa que escutava no final de cada frase. Zelito logo se tornou meu melhor amigo, tínhamos a mesma idade e foi estudar na mesma classe que eu. Licinha ajudava minha mãe em casa, era mais próxima de Nélia, e quando Lena nasceu era ela quem cuidava.


Parte 4

Depois a lembrança vai até Poções, onde fui morar na casa de minha vó Julinda. Como foram bons aqueles tempos! Não me lembro por que fui morar com minha vó, só sei que gostei muito. Primeiro porque eu gostava muito dela e de minha bisa Cassiana. E o segundo era um motivo bem egoísta: porque eu era a única criança da casa e tinha todas as regalias e atenções só pra mim. Além de vó e bisa, tinha Antônia e Joaquim.
Poções fica a 50 km de Iguaí e meus irmãos e primos iam pra lá nas férias. A casa de vó Julinda era como um sítio, uma chácara dentro da cidade, tinha um quintal enoooorme, com uma horta, muitas árvores, plantações de todo tipo, um pequeno lago - na verdade um tanque natural -, e muitos canteiros de flores. Por ter o clima frio, minha vó cultivava algumas flores e frutas próprios do clima: figo, marmelo, pêssego, maçã, romã. As flores eram copos-de-leite, lírios, dálias, rosas... Havia também o “quintal das galinhas”, com dezenas delas, de todas as formas: as arrepiadas, do pescoço pelado, as gordinhas, as de angola, os galos imponentes e os garnizés, as frangas adolescentes, as galinhas “de botar”, as chocas com pintinhos. Toda tarde os ovos eram recolhidos dos ninhos – a gente tinha que procurar nos buracos do gravatá que servia de cerca e às vezes encontrávamos também alguma cobra. Era aquele escândalo, pois Antônia morria de medo de cobra e gritava desesperada até minha vó vir matar. Era tão comum que já tinha em casa um “pau de matar cobra”. Minha vó e minha mãe eram mestras nesse trabalho. Mulheres retadas!
Essas são as lembranças mais remotas que tenho. Depois conto mais.

"É história que não acaba nunca."

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